Entre todas as moedas sul-americanas, o real teve o terceiro pior desempenho em relação ao dólar nos últimos 10 anos. De acordo com um levantamento da consultoria financeira L4 Capital, a moeda nacional perde apenas para o peso argentino e o peso uruguaio.
Na janela de referência, o peso argentino teve uma desvalorização de 98,37% de 2013 para cá — um reflexo da severa crise econômica que o país enfrenta há anos e que tem feito derreter o valor de sua moeda. Na esteira da crise argentina e com problemas próprios de inflação, o peso uruguaio teve um recuo de 70,24% no período. (saiba mais abaixo)
Já o real perdeu 54% de seu valor em relação ao dólar. Isso significa que os turistas brasileiros e as empresas que dependem de contratos feitos com base na moeda norte-americana sentiram o valor pago em suas transações mais que dobrar durante o período.
Mas cabe a observação de que o movimento de valorização do dólar não é só demérito da América do Sul. Há também um movimento de maior aplicação de recursos nos Estados Unidos, que valoriza a moeda.
Como os EUA são a maior economia do mundo, os investidores tendem a ter mais segurança sobre os retornos financeiros que terão e, assim, acabam voltando os olhos para lá em momentos de maior insegurança ou aversão ao risco para aplicações financeiras.
O levantamento foi realizado por Felipe Pontes, sócio da L4 Capital e com dados do Investing. Veja abaixo o ranking completo.
O real nos últimos 10 anos
Os últimos anos no Brasil foram fortemente marcados por dois grandes fatores: a crise de 2015-2016 e a pandemia da Covid-19.
No primeiro caso, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro caiu nos dois anos, confirmando a pior recessão da história do país. Em 2015, a economia já havia recuado 3,8%, e no ano seguinte teve nova retração de 3,6%.
Essa sequência, de dois anos seguidos de baixa, só tinha sido vista no Brasil entre 1930 e 1931, quando os recuos foram de 2,1% e 3,3%, respectivamente.
"Isso prejudicou o real porque investidores não gostam de incertezas econômicas", afirma o sócio da L4 Capital. Com isso, houve um aumento pela demanda do dólar, já que os EUA são conhecidos como um país estável. Houve um forte movimento de vender real, o que reduziu o valor da moeda.
Já a pandemia influenciou a cotação da moeda brasileira porque o país decidiu abrir as torneiras dos gastos públicos para tentar amenizar o impacto da crise econômica. Essa decisão também gerou dúvida nos investidores sobre quais seriam as possibilidades de o país conseguir arcar com seu patamar elevado de dívida e manter uma agenda de austeridade fiscal.
Mais uma vez, a incerteza trouxe um movimento de migração dos investidores para países mais seguros. Tanto que o real perdeu cerca de 16,65% do seu valor frente ao dólar entre fevereiro de 2020 (quando começou a pandemia) e maio de 2023 (quando a OMS declarou fim de emergência em relação à Covid-19).
Veja a variação do dólar ante o real nos últimos dez anos:
Em setembro de 2013, início do comparativo, era possível comprar US$ 1 com R$ 2,2836. Hoje, é preciso desembolsar quase R$ 5,00.
Especialistas entrevistados pelo g1 dizem que há ainda outras razões que explicam a desvalorização da moeda brasileira nos últimos 10 anos e sua manutenção em patamares baixos. Veja abaixo:
Juros norte-americanos;
Déficit fiscal;
Dívida pública;
Instabilidade institucional
Quanto ao primeiro ponto, Adilson Seixas, CEO da Loara Crédito, reforça que a alta dos juros nos Estados Unidos pesa no valor da moeda brasileira porque há uma migração dos investidores para economias com maior previsibilidade.
Trata-se da mesma dinâmica de preferir aplicações mais seguras e previsíveis, com o bônus de que os juros estão mais altos e vão render melhores retornos.
A expectativa é que o Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano) mantenha os juros inalterados, entre 5,25% e 5,50% ao ano na próxima reunião, em 20 de setembro. Esse, porém, é o maior patamar em 22 anos.
Já o déficit fiscal — quando governo gasta mais do que arrecada — pesa no valor do real porque o governo precisa emitir mais dinheiro para suprir os gastos, ampliando o saldo negativo.
“Há mais dinheiro brasileiro circulando no mercado do que moeda norte-americana, o que desvaloriza o preço do real”, explica Rodrigo Leite, professor de finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nos dados mais recentes, as contas do governo federal registraram déficit primário de R$ 35,9 bilhões em julho — o segundo pior resultado para o mês na séria histórica, iniciada em 1997. E é exatamente o déficit que puxa o terceiro fator que desvaloriza o real: a dívida pública.
Leite, da UFRJ, justifica que o endividamento faz investidores enxergarem o Brasil com dificuldade de honrar com seus compromissos econômicos — e, assim, decidem também vender os reais para comprar câmbio de países mais seguros, derrubando o preço da moeda brasileira.
“A probabilidade de um calote do Brasil com uma dívida como agora, que tem 80% do PIB, é muito maior do que na época que estava por volta dos 50% do PIB, [em 2013 e 2014]”, afirma o professor.
Já quanto a instabilidade institucional, os especialistas justificam que as mudanças políticas recentes — sejam as mudanças de direção na presidência, como as relações ruidosas entre os Poderes da República — trouxeram imprevisibilidade para a cena política e econômica.
Assim, os investidores renovam os receios e voltam a procurar países onde conseguem ter segurança maior sobre as decisões político-econômicas, que podem ou não afetar os investimentos.
Resultado pior na Argentina
A pior moeda latino-americana frente ao dólar é o peso argentino. Quem quisesse comprar 1 dólar, em setembro de 2013, precisava pagar quase 5 pesos argentinos. Atualmente, a relação é de cerca de 340 pesos para US$ 1 — considerando, é claro, o câmbio oficial.
Nesse caso, os principais motivos pela queda no câmbio argentino são as políticas econômicas do governo e a dívida externa do país.
Allan Augusto Gallo Antonio, professor de economia do Mackenzie, justifica que no primeiro caso, o governo argentino “gasta tanto” que precisa colocar moeda em circulação para arcar com os custos recorrentes, o que desvaloriza o peso.
O excesso de moeda em circulação também tende a impactar a inflação. Atualmente, a Argentina vive uma inflação anual média que ultrapassa os 100%.
Quanto às questões externas, o país sul-americano tinha uma dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de aproximadamente US$ 45 bilhões.
A captação aconteceu principalmente em 2018, durante o governo de Mauricio Macri, que buscava segurar a crise cambial e tentou zerar o déficit orçamentário do país através de fortes ajustes de gastos em diversas áreas do governo.
“Hoje, [a Argentina] é o principal devedor do FMI e, em decorrência dessas variáveis, tem assistido sua moeda derreter”, afirma Gallo Antonio. Os dois motivos também afastam investidores, que buscam vender o peso argentino para comprar moeda de países mais seguros.
Vale destacar que as commodities são um terceiro ponto, ainda que com menos peso que os dois apresentados acima. Isso porque o país depende muito da exportação de carne, o que traz reflexos diretos na balança comercial e na receita em dólar na Argentina.
Veja do desempenho do peso argentino frente ao dólar:
Para tentar solucionar a desvalorização do peso, o governo argentino anunciou algumas medidas para tentar fortalecer a economia local, como linhas de crédito a taxas subsidiadas para trabalhadores e bônus para aqueles que recebem ajuda alimentar e aposentados.
Além disso, o governo também informou que vai eliminar impostos sobre a exportação de produtos agrícolas com valor industrial agregado — como vinho, arroz e tabaco — e a entrega de fertilizantes. É estimado um prejuízo global de US$ 20 bilhões em 2023, ou quase 3% do PIB, devido à seca regional.
O ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, prevê ainda criar de um fundo de US$ 770 milhões para financiar exportações. O valor será via aportes financeiros do Banco Nación e do Banco de Inversión y Comercio Exterior (Bice).
Cotação do dólar na América do Sul
Veja abaixo a situação em outros países do continente.
Em setembro de 2013, o Uruguai conseguia comprar US$ 1 com quase 22,3 pesos uruguaios; hoje, precisam gastar perto de 38;
Há dez anos, os colombianos conseguiam comprar US$ 1 com quase 2 mil pesos colombianos; hoje, precisam desembolsar cerca de 4 mil
No mesmo período, os chilenos conseguiam comprar US$ 1 com cerca de 650 pesos chilenos; hoje, precisam desembolsar aproximadamente 900;
Os paraguaios pagavam perto de 4,4 mil guaranis (nome da moeda do Paraguai) em setembro de 2013; hoje, 7,2 mil
Em setembro de 2013, os peruanos conseguiam comprar US$ 1 com quase 3 novo sol (moeda do Peru); hoje, precisam desembolsar perto de 4;
Nos últimos dez anos, os bolivianos precisaram pagar cerca de 6,91 bolivianos da bolívia (nome da moeda) para comprar 1 dólar
O que acontece em outros países?
Segundo lugar entre as maiores desvalorizações, o Uruguai sofre com dois grandes problemas: inflação e reflexos da crise na Argentina.
O país enfrenta um problema inflacionário, no qual os preços subiram 110% nos últimos 10 anos. Na prática, enquanto as pessoas gastavam 10 pesos uruguaios para comprar um pão em 2013, por exemplo, atualmente precisam desembolsar 21.
Normalmente, os salários não acompanham o aumento nos custos, o que acaba pesando no orçamento familiar.
Além disso, a crise argentina também se reflete em uma grande diferença de preços entre os dois países.
"Lá no Uruguai o combustível, por exemplo, custa setenta pesos (1,58 dólar) por litro e aqui na Argentina pagamos vinte pesos (0,53 dólar), então é muito melhor para nós", disse Robert de Lima, que viajou menos de 45 km do Uruguai até Gualeguaychu à Reuters.
Os altos níveis de desemprego e falências foram relatados nas cidades fronteiriças, o que forçou o governo do Uruguai, em maio, a introduzir medidas econômicas para ajudar a proteger os comerciantes. Entre as ações estavam algumas isenções fiscais e descontos em gasolina e medicamentos.
O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, reconheceu que há um problema com a diferença entre os preços praticados no país e os vistos na Argentina, com exigências de governadores regionais para que seja implementado um imposto de importação temporário sobre as mercadorias estrangeiras transportadas pela fronteira.
E como a crise na Argentina não tem solução prevista no curto prazo, há uma insegurança dos moradores e turistas sobre como ficarão os preços no Uruguai que optam, assim, por procurar países mais baratos para viajar ou realizar compras.
A Colômbia, por sua vez, enfrentou um cenário de complexidade e desafios abrangendo diversos aspectos.
“A criminalidade e violência associadas ao narcotráfico, por exemplo, persistiram, e protestos sociais refletiram preocupações com desigualdade e acesso a serviços. Além disso, desafios fiscais, como déficits orçamentários, e questões estruturais limitaram o crescimento econômico e a capacidade de investimento”, justifica Gallo Antonio, professor do Mackenzie.
A inflação no país fechou em 13,12%, no maior patamar desde março de 1999. Entre os destaques, estavam os preços dos alimentos, do transporte e dos serviços públicos.
Já o Chile, segundo Gallo Antonio, vivenciou períodos de estabilidade política por muitos anos. A eleição de Gabriel Boric em 2021, no entanto, trouxe certa instabilidade, uma vez que ele fez sua propaganda política construída em propostas populistas.
“Ele sempre falava em elevar os gastos e até uma possível constituinte”, afirma o professor. Essas medidas afastaram investidores, que também venderam a moeda local e desvalorizaram o câmbio do país.
E por conta do aumento de dinheiro em circulação, o Chile encerrou 2022 com uma taxa de inflação ao consumidor de 12,8% — marcando o valor mais elevado em três décadas. Tudo em um contexto em que os chilenos estavam acostumados a enfrentar um aumento anual nos custos de vida de aproximadamente 3%.
Expectativa para próximos anos
A expectativa dos entrevistados é que as moedas latino-americanas não consigam se valorizar nos próximos meses. O CEO da Loara Crédito, por exemplo, diz que a tendência é que o dólar ganhe força, uma vez que é a moeda mais negociada no mundo e perspectiva de baixa de juros não está próxima.
“Os Estados Unidos é um país com maior grau de liberdade econômica que consegue atrair investimentos, impulsionando constantemente o crescimento da sua moeda", diz.
Em relação à moeda brasileira, Seixas afirma que o dólar é, historicamente, mais valorizado do que o real. "O real tende a se depreciar muito mais rápido por ser uma moeda de um país emergente, que tem uma economia mais instável quando comparada às economias desenvolvidas", acrescentou.
Já para o professor da UFRJ, Rodrigo Leite, a expectativa é que o dólar se mantenha estável em relação às moedas sul-americanas.
“[Porém], para o real, existe uma expectativa positiva se o governo conseguir implementar as medidas fiscais, conseguir diminuir o déficit e projetar, no ano que vem, um superávit [valor captado em exportação é maior do que o gasto em importação]”, disse.