Uma ação civil pública ajuizada nesta sexta-feira (31) pede ao Poder Judiciário que obrigue o Estado de São Paulo e a Prefeitura a implantarem solidariamente na cidade de Dracena uma casa-abrigo para mulheres e respectivos dependentes menores de 18 anos em situação de violência doméstica e familiar e um centro de educação e de reabilitação para os agressores.
Os dois tipos de serviços estão previstos na chamada Lei Maria da Penha.
Na ação, que foi protocolada no Fórum da Comarca de Dracena, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo solicita à Justiça a concessão de uma liminar para ordenar que a obrigação seja cumprida no prazo de até seis meses corridos, sob pena de multa diária de R$ 10 mil.
A Defensoria Pública também pede que sejam intimados os setores de assistência social do Estado e do município para o cumprimento integral da medida.
No julgamento do mérito, a solicitação da Defensoria Pública é para que a Justiça confirme a tutela antecipada para condenar os dois entes públicos a implementarem os serviços requisitados.
Outro lado
A Prefeitura de Dracena informou ao G1, nesta sexta-feira (31), que não irá se manifestar por enquanto, sobre o assunto, pois não foi notificada oficialmente acerca da ação civil pública.
Também procurada pelo G1, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social informou que não foi notificada oficialmente e aguarda posicionamento do Poder Judiciário para se manifestar sobre o caso.
Medidas protetivas
De acordo com o defensor público Orivaldo de Sousa Ginel Junior, autor da ação, a Comarca de Dracena concedeu nos últimos dois anos quase 600 requerimentos de medida protetiva de urgência a mulheres vítimas de violência doméstica e familiar: em 2017, foram 284 casos, enquanto em 2018 o número subiu para 288.
Pelo sistema de Registro Digital de Ocorrência (RDO), a Defensoria Pública teve acesso a 50 boletins de ocorrência lavrados em 2018 na cidade de Dracena sobre violência doméstica e familiar e verificou que 56 mulheres foram apontadas como vítimas naqueles documentos.
Na ação, à qual o G1 teve acesso, Ginel Junior cita que "muitas vítimas de violência doméstica e familiar temem denunciar o agressor, porque, dentre outros motivos, não têm para onde se refugiar".
"Em grande parte, as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar sofrem em silêncio, pois não encontram nenhum amparo familiar, social e estatal", complementa.
Ele reconhece que, embora a violência doméstica e familiar atinja todas as classes sociais, "é a mulher pobre que mais padece com a ausência de apoio".
"Para a mulher pobre que é vítima de violência doméstica e familiar, geralmente há duas opções: ou continua a conviver com o agressor, sujeitando-se a todo tipo de violência, ou sai de casa, deslocando-se para a residência de familiares ou amigos, cujos endereços são de conhecimento do agressor, a ensejar novas investidas", enfatiza o defensor público.
Exemplos no Estado
Ginel Junior exemplifica que, no Estado de São Paulo, existem casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores de idade em situação de violência doméstica e familiar em Araraquara, Bauru, Carapicuíba, Campinas, Diadema, Franca, Jundiaí, Limeira, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco, Ribeirão Preto, Santo André, São Bernardo do Campo, São Carlos, São José do Rio Preto, São Paulo, Sorocaba, Rio Claro e Suzano, entre outras cidades.
"Todavia, não há nenhuma casa-abrigo para mulheres e respectivos dependentes menores de idade em situação de violência doméstica e familiar na cidade de Dracena. Tampouco existe qualquer centro de educação e de reabilitação para os agressores na cidade", indica.
"Não existe, pois, nenhuma política pública de acolhimento das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e nem de educação e de reabilitação dos agressores, o que torna a violência cíclica e crescente", afirma.
Respostas estadual e municipal
A Defensoria Pública solicitou ao Estado e ao município informações sobre a possibilidade de implantação, com ou sem parceria, de uma casa-abrigo e de um centro de educação e de reabilitação em Dracena.
Segundo a ação civil pública, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social respondeu que as casas-abrigos são de responsabilidade dos municípios, salvo aqueles de pequeno porte, que recebem apoio técnico e financeiro por parte do Estado. Foram identificadas 23 casas-abrigos para mulheres vítimas no Estado e as cidades que contam com serviço de acolhimento são de grande porte. Sete delas contam com cofinanciamento do Estado e cinco recebem recursos da União.
As casas-abrigos para mulheres vítimas são serviços de longa duração (de 9 a 180 dias) e de caráter sigiloso. O órgão estadual alegou, segundo a ação, que os municípios que não possuem casas-abrigos para mulheres vítimas são orientados a disponibilizarem aluguel social, república, casa de passagem (de permanência curta – 15 dias) e benefícios eventuais, bem como a registrar toda e qualquer violência doméstica e familiar no banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Além disso, pontuou que a instalação de casa-abrigo para mulheres vítimas passa por criteriosa avaliação do Estado.
Já a Secretaria Municipal de Assistência Social comunicou, segundo a Defensoria Pública, que, ante a complexidade e o alto custo do acolhimento, a Prefeitura de Dracena não reúne recursos para a implantação de casa-abrigo para mulheres e respectivos dependentes menores de idade e de centro de educação e de reabilitação para agressores. Ainda apontou que o município conta com um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) que, entre suas atribuições, também presta atendimento a mulheres vítimas e a agressores, e com duas entidades de acolhimento institucional de crianças e adolescentes em situação de risco.
"Dessa maneira, a conduta das gestões estadual e municipal de assistência social é manifestamente inconstitucional e ilegal, a reclamar correção pela via coletiva", ressalta o defensor público.
"É certo que, em razão da situação de violência doméstica e familiar, as mulheres vítimas compõem grupo social vulnerável, o que justifica a atividade da Defensoria Pública", afirma Ginel Junior.
Em casa
"Evidente, pois, a necessidade urgente de que sejam executadas as políticas públicas estabelecidas na Lei Maria da Penha para efetiva proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar", enfatiza.
"A maior parte da situação de violência de gênero ocorre dentro da própria da casa das vítimas, sendo que, na maioria dos casos, o pai é o agressor das mulheres, crianças e adolescentes, o cônjuge, companheiro ou namorado é o agressor das vítimas jovens e adultas e o filho é o agressor das mulheres idosas", constata.
Segundo ele, "a imensa parte da violência doméstica e familiar é perpetrada no interior da residência da vítima e por parte do próprio cônjuge, companheiro ou namorado".
"Daí porque a Lei Maria da Penha prevê que, na hipótese de violência de gênero, a mulher vítima seja encaminhada para casa-abrigo, a fim de que ela e seus dependentes menores de idade sejam acolhidos provisoriamente até que a ofendida consiga se estruturar e providenciar moradia segura", explica Ginel Junior.
"De se reconhecer, a propósito, que a interpretação de que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios têm o poder-dever de estabelecer casas-abrigos para mulheres vítimas e respectivos dependentes menores de idade é a que atende aos fins sociais da Lei nº 11.340/06, como preconiza a própria Lei Maria da Penha", afirma Ginel Junior.
Na ação, o defensor público explica que as casas-abrigos são locais sigilosos destinados ao acolhimento provisório das mulheres vítimas de violência de gênero e seus dependentes menores de idade.
"Assim, tão logo a mulher sofra qualquer tipo de violência doméstica e familiar, deve ser encaminhada com os respectivos dependentes menores de idade a uma casa-abrigo", observa.
Sem amparo
"Não é incomum que o agressor proíba a mulher vítima de violência de gênero de trabalhar e que ainda afaste a ofendida de amigos e familiares, para que ela não tenha o amparo de ninguém", afirma Ginel Junior.
"Ao não encontrar amparo de amigos, familiares e do próprio Estado (lato sensu), a mulher vítima de violência doméstica e familiar acaba por se ver forçada a continuar convivendo com o agressor e, por isso, ainda é tachada e estereotipada como ‘mulher masoquista’ ou ‘mulher que gosta de apanhar’, além de outros repugnantes e odiosos impropérios", afirma Ginel Junior.
Segundo ele, "a criação de casa-abrigo para acolhimento das mulheres vítimas e seus dependentes até que se reestruturem e restabeleçam seus laços de amizade e de família é fundamental para a eliminação da violência".
"A Lei Maria da Penha é clara ao dispor que as políticas públicas de proteção da mulher contra a violência de gênero devem ser implementadas conjuntamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 8º), inclusive na implantação de casas-abrigos (art. 35, II)", cita o defensor público.
A própria Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, conforme ele cita, disciplina que as casas-abrigos devem seguir o regime de cogestão.
Para ele, é "indiscutível" a responsabilidade solidária dos entes federados na criação das casas-abrigos.
"Conquanto a Lei Maria da Penha vá completar 13 anos no próximo mês de agosto, não foi criada nenhuma casa-abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e respectivos dependentes menores de idade na cidade de Dracena", ressalta Ginel Junior.
'Absolutamente ineficaz'
"Eventual concessão de aluguel social ou benefícios eventuais por parte da Municipalidade às mulheres vítimas de violência de gênero, como sugerido pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, seria absolutamente ineficaz, porque, quando sofre a violência, a ofendida deve ser encaminhada com a máxima urgência para local seguro, não dispondo de tempo e nem mesmo de condição emocional (e, às vezes, física) para procurar imóvel e celebrar contrato de locação", argumenta.
"E, mesmo que houvesse essa possibilidade, o agressor poderia facilmente descobrir o novo endereço da vítima e voltar a praticar violência doméstica e familiar", complementa.
"Aliás, é completamente absurda a destinação, por parte do Município, de um mesmo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) para atendimento tanto das mulheres vítimas de violência de gênero como dos agressores, fazendo com que as ofendidas tenham de se defrontar com os seus algozes no local onde elas deveriam receber suporte psicossocial", comenta.
O defensor público também comenta que "eventual encaminhamento das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar para república, casa de passagem ou entidade de acolhimento de crianças e adolescentes tampouco seria viável, pois, além de não terem esses locais estruturas adequadas para convivência familiar da mulher vítima e seus dependentes menores de idade, não são sigilosos, mas de conhecimento público".
"A propósito, a Secretaria Municipal de Assistência Social asseverou que as entidades de acolhimento institucional existentes no Município são dedicadas apenas a crianças e adolescentes em situação de perigo, a não comportar, portanto, o acolhimento da mãe vítima de violência de gênero", salienta.
"Ora, o acolhimento única e exclusivamente dos dependentes menores de idade em entidades de atendimento, sem o igual acolhimento da genitora vítima, corresponderia a mais uma violência imposta à mãe ofendida, não mais por seu agressor habitual, mas pela própria Municipalidade que segregaria genitora e dependentes menores de idade", enfatiza.
Ainda na ação, Ginel Junior reconhece que não existe nenhuma casa-abrigo para mulheres vítimas na região oeste do Estado e as instituições do gênero mais próximas ficam em São José do Rio Preto e em Bauru, respectivamente, a aproximadamente 300km e 320km de Dracena.
"Não se pode admitir que as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar de Dracena fiquem aqui isoladas e desprovidas do pronto acolhimento em casa-abrigo de que necessitam por simples inação do Estado e do Município", afirma.
Cultura machista
Ginel Junior argumenta que "boa parte dos agressores é composta por homens descontentes com si próprios e que acabam por transferir e canalizar toda a sua frustração na pessoa da vítima, que, no caso de ofendida jovem e adulta, comumente é, como visto, a sua esposa, companheira ou namorada".
"Não se pode negar que ainda remanesce uma cultura machista no Brasil, país colonizado sob o modelo patriarcal de família, que, por alguns setores e segmentos, ainda insiste em manter uma visão desigual de gênero. E não é raro que os agressores estejam envolvidos com o uso abusivo de álcool e/ou com o consumo de drogas. Daí a necessidade de programas de reeducação e de reabilitação para agressores", discorre.
De acordo com o defensor público, os programas de reeducação e de reabilitação para agressores devem ser realizados por equipe multidisciplinar em centros próprios.
"O Judiciário pode, ao condenar o agressor à pena restritiva de direitos de limitação de fim de semana em substituição à sanção corporal, impor o comparecimento obrigatório do agressor a programas de reeducação e de reabilitação. Todavia, não existe nenhum centro de educação e de reabilitação para os agressores na cidade de Dracena", pontua.
"Desse modo, não se alcança a ruptura da cultura de violência de gênero junto aos agressores, o que faz com que a violência doméstica e familiar seja sempre cíclica e progressiva", reforça.
Segundo Ginel Junior, "a necessidade de instalação de um centro de educação e de reabilitação para os agressores na cidade de Dracena é, pois, premente".
No entendimento do defensor público, "não restam quaisquer dúvidas quanto à obrigatoriedade do Estado e do Município na implementação não apenas de casa-abrigo para mulheres vítimas de violência de gênero e respectivos dependentes menores de idade, mas também de centro de educação e de reabilitação para os agressores" em Dracena.