A falta de apetite e a febre da pequena Ana Luísa dos Santos Oliveira, de 8 anos, acenderam o alerta da mãe, Valquíria Alice dos Santos. Mas a ausência de sintomas respiratórios fez com que a vendedora, de 40 anos, não cogitasse a Covid-19 ao levar a filha ao médico, em novembro. Veio, então, o primeiro diagnóstico: dengue. O quadro piorou, a tosse surgiu, e a criança voltou ao hospital. A queda na saturação levantou a suspeita da doença, que um teste confirmou. Um raio-X mostrou que os pulmões estavam comprometidos.
— Ela ia à escola normalmente, sempre com os protocolos de higiene... Era bem cuidadosa. Não tinha problema de saúde, fazia balé, natação — relembrou Valquíria ao GLOBO. — Todos nós aqui em casa tomamos a vacina. Até brincávamos: “Ana, logo, logo é você”. Ela respondia: “tá bom, mãe”.
Ana Luísa foi internada e levada para a terapia intensiva. Lá, passou por intubação e hemodiálise. Valquíria conta que a filha estava ansiosa para tomar a vacina. Mas não deu tempo: a menina morreu um mês depois, no Guarujá (SP), antes que a imunização chegasse à faixa dela.
— Minha filha foi forte até o fim. Não desejo isso a ninguém. Tenho certeza de que, se ela tivesse tomado a vacina bem antes, ela poderia ter pegado, mas não tanto (tão grave) —contou a mãe, emocionada.
Letalidade
Enquanto o debate sobre vacinação infantil se arrastava ao longo de 20 dias no governo federal, o Brasil registrou ao menos seis mortes e 124 casos graves de Covid-19 na faixa etária de 5 a 11 anos, o que representa um letalidade de 4,83%. Na média, é como se uma criança tivesse morrido a cada três dias, mostra levantamento do GLOBO.
Os dados são do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), que compila casos de internação por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), na qual a Covid-19 se inclui. Os registros foram compilados pela Rede Análise Covid-19.
Dados do consórcio de imprensa do qual O GLOBO faz parte mostram que pelo menos 5.865.375 crianças de 5 a 11 anos receberam a primeira dose da vacina contra a Covid-19 até ontem em todo o Brasil, o que equivale a 28,61% da faixa etária. A vacinação infantil nas capitais tem avanço desigual, falhas de registro e atraso nos dados. Por isso, as estatísticas podem estar aquém da realidade. Com base em dados fornecidos por essas cidades, o país deve levar cerca de quatro meses para completar a primeira etapa nesse público.
O vice-presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), Marcelo Brandão, que atua em UTI infantil, afirma não haver justificativa para retardar a vacinação após o aval dos órgãos competentes. Segundo o pediatra, o ideal é que a imunização tivesse começado o quanto antes para que as crianças estivessem protegidas antes da volta às aulas:
— Se a gente tivesse começado as aulas com as duas doses, as crianças poderiam ter contatos com menos riscos.
Pressão nas UTIs
O médico ressalta que a variante Ômicron tem pressionado as UTIs pediátricas do país, que já trabalham perto de 100% da capacidade. Os números do Sivep-Gripe, porém, ainda são parciais e podem ser atualizados nas próximas semanas. Segundo o coordenador da Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt, não é possível estimar os números reais, distorcidos pela subnotificação.
A tendência é de que as hospitalizações infantis se acirrem até o fim de março com a Ômicron e a vacinação incompleta — o intervalo entre as doses é de oito semanas. A letalidade deve cair, justamente por conta da cepa, que é mais transmissível mas costuma ter desdobramentos menos graves.
— Entre janeiro e março, que suponho que serão meses de hospitalização mais elevada, seguramente vamos ver número mais altos, até porque ainda não terá dado tempo de efetivar a vacinação das crianças — avalia o presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Marco Aurélio Sáfadi.
Intensivista, Brandão ressalta que há uma falsa percepção de que a doença é menos danosa nessa população.
— (A doença) é tão grave quanto no adulto. Temos um número significativo de óbitos e internações desde o início da pandemia — disse o vice-presidente da AMIB.
Vinte dias se passaram entre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberar as doses pediátricas da Pfizer para o grupo em 16 de dezembro e o Ministério da Saúde autorizar a vacinação em 5 de janeiro. Ainda não havia reserva de imunizantes infantis às vésperas da aprovação da agência. O aditivo do contrato com a farmacêutica — que previa originalmente 100 milhões de doses para adultos — foi assinado em 28 de dezembro, quando 20 milhões desse total passaram a ser destinados à faixa.
Tensão permanente
Esses 20 dias foram marcados por uma inédita consulta à sociedade sobre o tema, por uma audiência pública e por um imbróglio político permeado pela oposição do presidente Jair Bolsonaro.
Em entrevista ao GLOBO, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, negou ter havido atrasos na liberação de vacinas, uma vez que as doses pediátricas da Pfizer não estavam ainda disponíveis.
Diante do cenário acirrado e de polarização política, a mãe de Ana Luísa destaca a importância de vacinar os filhos contra a Covid-19:
— O pessoal tem medo? Tem. Mas tem que ter mais medo da Covid do que da vacina. A primeira vez que vi minha filha na UTI, intubada, eu chorei. Fiquei aliviada com a aprovação das vacinas, mas triste pelo fato de a minha filha não ter tomado — lamenta Valquíria.